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  • Foto do escritorjackelinescarpelli

IDEIA ACHADA É ROUBADA?



Imagine um mundo em que as ideias sejam propriedade privada, cada livre associação da mente humana verbalizada passa a ser de quem falou primeiro. Um mundo em que os pensamentos são cercados por grades imaginárias, por placas de "proibido a passagem, propriedade particular". Vocês gostariam de viver nesse mundo um tanto quanto autoritário?


Ideias, meus caros, são pensamentos e felizmente pensamentos não têm dono. Caso contrário os já atravancados avanços da civilização humana seriam impossíveis e se desejamos viver democraticamente precisamos aceitar a premissa fundamental da liberdade das ideias. É o momento de colocar as sandálias da humildade, alecrim dourado, e reconhecer que fazemos parte de uma sociedade, de uma cultura e no nosso caso de uma longuíssima tradição de contadores de histórias e é dentro dessa estreita margem de singularidade que construímos isso a que chamamos "ideia original".


Então, se não existe proteção jurídica das ideias o direito autoral é bagunça? Isso significa que a lei não protege essa abstração chamada ideia, mas sim sua execução.

Aqui adentramos um território espinhoso e que pode gerar gatilho em alguns leitores, mas pega na minha mão, vamos juntas superar esse trauma. Quem trabalha com criação já viveu ou conhece alguém que provou a amarga experiência de se achar injustiçado, porque teve sua "ideia roubada " ou foi acusado de ter "roubado a ideia" de alguém. Esses relatos complicados circulam como boatos de mercado e podem, inclusive, tomar proporções litigiosas. Eu mesma já vivi tal frustrante jornada e esse artigo é justamente uma tentativa de disseminar a palavra jurídica para que vocês evitem cair nessa cilada.


O inciso I, art 8º, da Lei 9610/98 determina que para uma obra intelectual ser protegida, faz-se necessário que ela seja exteriorizada, por qualquer meio, ou seja, que a criação seja retirada do abstrato campo das ideias e registrada num suporte. É preciso materializar, seja de forma escrita, visual, ou fonográfica - caso se trate de uma música. E mais, para garantir uma proteção mais efetiva é preciso que seu projeto não seja genérico, que ele contenha especificidades e alguma singularidade.


Na prática isso é complicadíssimo, porque a maioria dos projetos não são tão singulares assim, sendo plenamente possível que coincidências aconteçam. Estamos todos nadando no mesmo caldo cultural - nosso zeitgeist - e as ideias, essas criaturas livres, circulam por aí, mais rápidas que a velocidade da luz. Nesse sentido, de duas uma, sai na frente quem materializa primeiro ou quem consegue transpor sua singularidade também na execução.


Um mesmo tema, com uma mesma premissa e os mesmos personagens escrita por autores diferentes pode resultar em obras completamente distintas. E aqui seguimos numa via de mão dupla, por um lado o caminho é relaxar e parar de tratar suas ideias ainda genéricas como "my precious", divida, compartilhe, lapide, teste, colabore. Trabalhe seu ponto de vista único, sua perspectiva singular sobre aquele recorte, tenha molejo, nossa arte é coletiva. Por outro lado, o conselho é outro, seja comedido, crie mecanismos para se precaver, saiba a quem apresentar, peça confidencialidade.


Equilíbrio dinâmico: seja maleável, mas ao mesmo tempo tenha cautela.

Aqui dica de ouro pra vida, de quem já provou o amargor do litígio, caso você seja a produtora, sempre comunique de forma clara, claríssima, como um rio de águas cristalinas, onde termina seu direito e começa o do outro. Não negligencie os contratos - o que é acordado não sai caro. Do outro lado, se você pretende negociar um projeto seu e morre de medo de alguém "roubar sua ideia" a primeira dica é: respira, vamos por partes. Se o projeto em questão é aquele do peito, sua preciosidade, estude e procure profissionais de sua confiança para apresentar, o mundo do audiovisual é uma profissão de relações, não tenha pressa. Se você está na chuva para se molhar, não segure, apresente e trabalhe na minimização dos riscos.


Como? Comece pelo clássico registro na Biblioteca Nacional, quanto mais específico e detalhado seu argumento ou roteiro melhor, mas lembre-se que esse registro não implica em nenhum exame de conteúdo ou de anterioridade. Em suma, a Biblioteca Nacional não examina se o que lhe trazem à registro é, ou não, objeto de proteção autoral. Vocês sabem disso, basta enviar o material e pagar a taxa, mas apesar de ser uma prova frágil, este registro ao menos garante alguma marcação temporal oficial da existência da sua obra, e isso já é um começo.


Acumule mais provas, mantenha registrado o histórico de edições do arquivo, salve emails e mensagens trocadas e se possível peça para assinar um termo de confidencialidade quando for apresentar o projeto a potenciais parceiros. Mas, por favor, tenha bom senso e consciência realista do nível de consistência e singularidade do seu projeto, não banque a paranóia delirante do nada, muitas vezes é mais produtivo construir relações de confiança, sem partir do princípio de que todo mundo quer puxar o seu tapete.


Sempre que possível estabeleça relações claras, na dúvida, faça perguntas. Precisamos normalizar os questionamentos, nem sempre os detalhes de uma negociação são claros e para amadurecer como mercado precisamos conversar mais sobre direitos e deveres. Não existe nada mais frutífero para o trabalho que relações profissionais e colaborativas bem resolvidas e isso não tem nada a ver em ser amigável e simpático com todos, isso tem a ver com profissionalismo e respeito.


Diante de um panorama de profissionais pressionados pela precarização, precisamos mais do que nunca disseminar a palavra jurídica, mirando em bases mais justas e transparentes para realização do trabalho criativo. Dito isso, não se esqueça, ideias, meus caros, são livres e não vivem em quarentena, deixem que elas voem.

Escrito por Jack Scarpelli


E vocês já passaram por algum perrengue relacionado ao tema do artigo? Comenta aqui em baixo, vamos trocando ideias.

 

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